15 setembro 2005

Carta à Millôr Fernandes

Paulo Francis já escreveu que quem não é jornalista e fica
escrevendo para a imprensa não bate bem da cabeça.

Mas pela primeira vez, vou cometer essa insanidade e acho que por um motivo justo.

Na edição de 21 de agosto, o Estado de S.Paulo trouxe no caderno "Aliás" uma excelente entrevista com Millôr Fernandes.

Lá estavam seu raciocínio rápido, seu imenso talento
e sua justa indignação com tudo o que está acontecendo
nos esgotos de Brasília.

Mas, eis que perguntado sobre o envolvimento do
publicitário Marcos Valério nos esquemas de corrupção
que assolam o Planalto, o indignado Millôr fuzilou:

"Não é por acaso. O jornalismo é uma profissão cujo objetivo 'filosófico' é trazer à tona coisas que as pessoas não sabem. Tem um compromisso com a verdade. Agora, qual o objetivo 'filosófico' da publicidade? A mentira. É mentir sobre o sabonete, a maionese, a margarina, o político."

E mais para a frente, conclui: "Não tenho respeito pela publicidade."

Doeu. Ainda mais vindo de um homem da integridade do Millôr.

Mas considero tais colocações ofensivas e explico por quê.

Primeiro, como em toda profissão, há profissionais e profissionais.

O fato de que colegas, por mais holofotes que os cerquem, tenham faltado com a ética não é motivo para generalizações.

Sou diretor de criação de uma das maiores, mais sérias, respeitadas e a mais premiada agência do país, a AlmapBBDO.
Que entre inúmeras qualidades, se dá o direito de não trabalhar com nenhuma conta de governo, nem de fazer campanha
para nenhum candidato.

Claro que a publicidade tem defeitos - citaria um dos mais
graves o excesso de outdoors e backlights que infestam
as ruas das grandes cidades.

Mas entendo que, ao posicionar o jornalismo como
"paladino da verdade" e a publicidade como "promotora
da mentira", Millor está sendo maniqueísta.

Primeiro, quem possibilita ao jornalismo ser independente, imparcial, apurador, de não depender de verbas públicas
nem de favores de quem quer que seja para praticar
sua independência é justamente a publicidade.

Ou sejamos mais diretos: a principal fonte pagadora
do salário do jornalista é a publicidade, que sustenta
o jornal, a revista, a televisão, o rádio.

Sem a publicidade, não haveria imprensa livre, como
bem apregoa Roberto Civita, dono da revista que paga
Millôr por publicar seus brilhantes artigos.

Portanto, tenha sim, Millôr, respeito pela publicidade.

Sobre qual o objetivo "filosófico" da publicidade, é muito simples: a publicidade existe para anunciar, promover e vender os produtos que anuncia.

Filosoficamente, funciona na mesma esfera do feirante que anuncia tomates maduros e do balconista da padaria que anuncia as qualidades da sua empadinha.

E isso pode ser perfeitamente feito sem mentir, dignamente, como atesta o trabalho de nossa agência.

Não somos artistas. Somos, de fato e com muito orgulho, vendedores de sabonetes e margarinas e, na minha opinião,
não deveríamos ser de políticos.

Ah, sim, também somos vendedores de livros.

A Almap tem o orgulho de ter em sua carteira de clientes
a Companhia das Letras e de já ter anunciado autores como
Paul Auster, José Saramago, Italo Calvino, Rubem Fonseca,
Ruy Castro e, assim, ajudá-los a promover seus livros.

Não sejamos tão simplistas. Como não me orgulho da atitude de certos colegas, Millôr certamente deve questionar seus pares que trabalham em órgãos de imprensa controlados por políticos poderosos, que manipulam a informação de acordo com suas
conveniências, contribuindo assim para a perpetuação
de seus patrões no poder.

Pergunte a um político do que ele prefere ser proprietário:
de uma agência de publicidade ou de um jornal.

Ousaria dizer que o jornalismo foi muito mais responsável,
por exemplo, em criar a imagem de Lula do que a publicidade. Como já havia feito com Collor e FHC.

Nesse raciocínio, ainda, imagino o desprezo que Millôr deve sentir pelos milhares de colegas jornalistas que trabalham
em assessorias de imprensa, que recebem um justo salário
para, com seu talento, promover pessoas e empresas.

Mas voltemos à entrevista. "Os caras ficam aí se gabando de que sabem fazer slogans e passam anos para criar coisas como 'Coca-Cola é isso aí'. De quantos slogans precisam? Faço dez agora."

Péra aí. Mas então eu começo a entender: parece que Millor é contra a publicidade ruim, banal, que infelizmente é maioria.

Ou talvez seja contra os publicitários "ficarem se gabando".

Convenhamos: de fato, muito espaço é inutilmente gasto
para a autopromoção de publicitários. Ocupamos páginas de Caras demais e Exame de menos.

Mas então volto à minha agência: apesar de ser de longe
a mais premiada do país, é provável que Millor nem soubesse
da nossa existência. Nem nunca deve ter ouvido meu nome. Nem dos sócios da agência. Ótimo, estamos no caminho certo.

Enfim, gostaria de acreditar que tal generalização tenha
sido mais fruto de uma indignação atropelada do que de
um raciocínio coerente.

Não sou defensor de minha classe nem tenho procuração
para isso. Só resolvi escrever porque, ao terminar de ler a entrevista, olhei para meus filhos Pedro e Maria brincando na sala,
e pensei no que um dia eles pudessem pensar de mim.

Cássio Zanatta é diretor de criação da AlmapBBDO

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